quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Aprendizagens nos espaços virtuais

I. APRENDIZAGENS





Embora seja comum aos legados teóricos pretender explicar tudo sozinhos, esta pretensão é vista hoje como mera empáfia. Sendo teoria construção mental simplificada/idealizada e, por isso mesmo, naturalmente reducionista (Haack, 2003), sem falar em sua face multicultural (Harding, 1998; 2004; 2006), não consegue, por mais que o queira ou prometa, abarcar tudo e oferecer a última explicação. Este vento, por vezes incômodo, de desconstrução de idéias fixas no mundo da ciência sopra, na pedagogia, no desafio da alfabetização, que agora também aparece no plural (novas “alfabetizações”) (Coiro et alii, 2008. Lankshear & Knobel, 2006). Primeiro, a alfabetização não acontece mais apenas na escola ou em ambientes restritos. Segundo, advindas novas tecnologias utilizáveis na escolarização das pessoas (em especial computador e internet), as crianças se alfabetizam em casa ou em outros lugares onde haja acesso virtual, em geral mais efetivamente. Terceiro, a criança – que é “nativa”, enquanto nós, adultos, somos “imigrantes” (Prensky, 2001; 2006) –, ao deparar-se com o computador, lida com ele sem saber ler, não precisando, ademais, de curso específico; ao contrário, fica aborrecida quando os pais (adultos) persistem em lhes dar “instruções”. No computador não existe apenas material para “ler”; há também para ver, escutar, manipular, mexer. Quarto, o desejo de ler comparece em seguida, quando a criança descobre que na internet é possível comunicar-se, estabelecendo com colegas um mundo de relacionamentos fascinantes. Quinto, aprende a ler de maneira “situada” (Gee, 2004), porque experimenta no mundo virtual situações de sua vida concreta (ainda que simuladas), em especial situações impregnadas de sua “cultura popular” (tipicamente mediadas por novas tecnologias). Esta aprendizagem da leitura e escrita surge de motivação pessoal turbinada pelos relacionamentos virtuais, mais do que pela obrigatoriedade escolar.
Diferença notável entre ambientes virtuais não escolares e os ambientes (quase sempre não virtuais) escolares é que nestes a relação tende a ser abstrata (construída ou fantasiada num nicho separado do mundo das crianças), enquanto nos outros a criança é a referência primeira e última, o que lhe permite assumir logo posição de relativa autoria. É típico que esta comunicação virtual entre coleguinhas, para além de animadamente motivada, implica expressar-se com devida autonomia e autoria, ativando a identidade da criança e maneiras criativas de expressão própria. Daí advém o fenômeno não menos impressionante de que as crianças desenvolvem, rápida e naturalmente, um “dialeto” e “alfabeto” próprio, à revelia dos gramáticos. Se, de um lado, isto significa um “assassinato” da gramática (só para os gramáticos, claro!), de outro, significa a elaboração de identidades menos rígidas, mais negociáveis e também mais fragmentadas. Enquanto a alfabetização escolar, além de tendencialmente abstrata, é em geral “dura”, disciplinar, porque repassa a expectativa autoritária de confinamento na escola, a alfabetização virtual parece descortinar horizontes bem mais abertos para a criança, que se sente “dona” da situação, por mais que isto seja extremamente relativo. A criança adora a internet, porque lhe parece mundo “livre”, sem dono, sem tutor, sem hierarquia, sem “professor”, sem adultos que impõem instruções e controle. A liberdade na internet é, em grande parte, ilusória (Galloway, 2004. Lessig, 2004. Fabos, 2008), mas é impressionante a “sensação” de liberdade que nela se pode experimentar, em parte porque mundos virtuais não possuem restrições naturais dos mundos físicos (Tapscott, 2009). Bastaria lembrar que o mundo da imaginação infantil é cada vez mais povoado de construções virtuais animadas em 3D, o que permite soltar a imaginação sem limites, substituindo – para desgosto de muitos – em parte os contadores físicos de histórias...

II. AMBIENTES VIRTUAIS



Ambientes virtuais são “reais”, porque simulação são parte da realidade e da mente (Aldrich, 2004. Gibson et alii, 2007. Castronova, 2005), em especial para as novas gerações (Tapscott, 2009). A par de exageros sempre possíveis e igualmente mórbidos (Veen & Vrakking, 2006), o mundo da fantasia ganhou dimensões infinitas em videogames e outras construções virtuais (Bogost, 2007). Videogames (os “bons”) (Gee, 2007; 2008) são considerados os melhores ambientes de aprendizagem, porque combinam motivação intensa, aprendizagem centrada em problematizações (problem-based learning) (Savin-Baden & Wilkie, 2006) – o jogo é literalmente um “bom” problema –, estratégias de apoio para superar nível a nível (scaffolding), discussão online entre pares, desconstrução e reconstrução de ambientes, pesquisa e autoria constante... Alguns traços, segundo Gee (2008), seriam: i) todo jogador cria um avatar, o personagem que pretende encarnar como jogador e no qual pode investir criatividade expressiva; ii) é sempre possível mudar, até certo ponto, as regras do jogo, o que faculta ao jogador sentir-se, em parte, autor do jogo; esta liberdade, em geral, é bem menor do que se imagina, mas a sensação de liberdade poder ser muito ampla; iii) é sempre também possível mudar cenários do jogo, pesquisar novos cenários, complementar informações, algo que também concorre para criar a sensação de autoria; iv) escalonado em etapas cada vez mais exigentes, os jogos colocam à prova a tenacidade e motivação dos jogadores, o que sugere não ser prazer imediato que os move, mas grandes desafios; buscam a alegria do bom combate, não a alegria do bobo alegre; v) como regra, os jogadores se agrupam online para discutir os jogos e as jogadas, uma interatividade que leva muitas vezes o nome de “peer-university” (universidade de pares); vi) usando estratégias da “zona de desenvolvimento proximal”, o jogador é, ao mesmo tempo, amparado e desafiado, combinando suporte e exigência, com o objetivo de manter o jogo prazeroso e desafiador; vii) sem receitas prontas, a maioria dos jogos exige pesquisa de estratégias e conhecimentos, para entender bem os desafios e enfrentá-los com inteligência.

Se as novas tecnologias não inventaram a aprendizagem, trouxeram novidades pertinentes. A primeira é a noção de “aprendizagens” ou de “multialfabetizações” (Cope/Kalantzis, 2000), ou, ainda de “discurso multimodal” (Kress & Leeuwen, 2001. Kress, 2005). No computador a criança não só “lê” textos, mas lida com outras formas de expressão, como imagem e som, animação, comunicação, interatividade, modulações que lhe parecem muito mais próprias de seu modo de ser. Na vida do adulto, em geral, texto é texto impresso, por vezes escrito à mão, enquanto no computador é multimodal, construído com vários recursos que lhe conferem o jeito de algo flexível, manipulável. Como dizem os teóricos (Kress, 2005), há diferenças profundas entre texto impresso e texto orientado por imagem. A mais marcante talvez seja que texto impresso é linear, de cima para baixo, da esquerda para a direita, palavra por palavra, linha por linha, parágrafo por parágrafo, página por página, seqüencialmente, hierarquicamente. Parece próprio da sociedade disciplinar, com pretensão de algo completo, acabado, a que cabe, antes de tudo, respeito submisso. Daí segue que interpretação, ainda que sempre na ordem do dia, precisa ser disciplinada em nome da interpretação oficial que começa com o dono do texto (o autor). Textos multimodais são, por conta sobretudo da dinâmica da imagem, flexíveis, maleáveis, não possuem centro nem hierarquia, são montados por unidades separáveis e por isso adaptáveis (Bogost, 2006), podem ser construídos, desconstruídos, reconstruídos a gosto, estão sempre a caminho e à disposição, são descartáveis como os próprios autores. Tais textos não são feitos para serem adotados, acatados, respeitados, mas para serem “mexidos”, manipulados ou mesmo “customizados”. Se por trás do texto tradicional se escondem táticas mil de comando e manipulação, próprias da apropriação dos textos e de seus significados (Manguel, 1996. Lessig, 2004), textos multimodais virtuais parecem escapar ao controle à medida que são plásticos, como uma foto que podemos recortar, ampliar, diminuir, tirar o vermelho dos olhos, editar. A noção de “editar” implica que a linha de força poderia ter mudado de lado: em vez do leitor submisso ao texto, o texto está à disposição do leitor. Através da possibilidade de remix constante e sempre aberto, a habilidade de interpretar com desenvoltura pode aperfeiçoar-se, aprimorando condições de autoria, tomando-se em conta que a autoria de agora já não pretende apropriação do texto, mas interatividade sem peias.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010